2_ «Foi a FNE quem criou a carreira única»
Nesta segunda parte da entrevista, Conceição Alves Pinto, antiga Presidente do Sindicato Democrático dos Professores da Grande Lisboa e Vale do Tejo (SDPGL), fala-nos sobre o peso da negociação nas questões da educação e traça linhas sobre o futuro do sindicalismo.
Jornal FNE (JF) – Participou na famosa luta do 8º escalão, uma das mais duras batalhas que a FNE teve que enfrentar. O que estava de facto em questão? Que outro momento deixou marca no crescimento e implementação da FNE no meio sindical?
Conceição Alves Pinto (CAP) – Não foi só o 8º escalão. Foi todo o processo de avaliação. Recusávamos a avaliação por inspetores – ou por figuras semelhantes, considerávamos que se deviam encontrar novas formas de avaliação sobre as funções desempenhadas pelos docentes. Mas a situação trazia insegurança e ansiedade. Os professores nunca tinham sido preparados para produzir documentos que espelhassem as diferentes facetas da sua atividade docente. Ocorreu mesmo uma situação muito caricata à volta do currículo a apresentar para acesso ao 8º escalão. Numa reunião de um sindicato da “concorrência” os docentes colocaram questões, pois não tinham ideia em que consistiria o currículo neste contexto. Para responder a essas questões alguém apresentou como exemplo o currículo de um doutorado da nossa praça – que até tinha sido ministro – Era um currículo cheio de artigos científicos publicados, comunicações em conferências internacionais, publicações…. Claro que as pessoas se insurgiram porque aquele tipo de currículo não tinha nada a ver com a experiência dos professores e os docentes saíram dessa reunião com a ideia de que os sindicatos estavam a vender os professores.
A abordagem da FNE era totalmente diferente. Defendíamos uma conceção do currículo como uma síntese do percurso da vida profissional, centrado na explicitação fundamentada da intervenção e dos projetos dos professores com os alunos, o que era algo totalmente inovador. O currículo a apresentar no acesso ao 8º escalão devia estar articulado com os relatórios que anteriormente se tinham feito no final de cada escalão. A abordagem do currículo, e dos relatórios de prestação de contas como explicitação dos objetivos, dos processos e dos resultados obtidos na atividade docente, implicou um esforço grande de formação para que os docentes construíssem elementos personalizados para a apresentação destes documentos.
A formação consistia numa primeira parte de 12 horas, a cargo da Professora Manuela Teixeira e de mim própria, sobre a função docente nas diversas dimensões que deveriam ser vertidas por um lado para o relatório de forma mais minuciosa e por outro para o currículo de forma mais sintetizada. Seguiam-se mais 12 horas em pequenos grupos em que cada docente procurava construir os instrumentos de forma personalizada. Foi um trabalho levado a cabo do norte ao sul do país e ilhas. Direi que esta formação do “Currículo e Relatório” foi o embrião que deu mais tarde origem ao Instuto Superior de Educação e Trabalho – ISET.
Outro momento importante foi todo o processo que desembocou na alteração do diploma da direção e gestão das escolas, melhorando o quadro da intervenção dos professores e dos diferentes membros da comunidade educativa, com o objetivo de contribuir para uma maior dinâmica institucional.
A FNE defendia uma conceção do currículo como uma síntese do percurso da vida profissional, centrado na explicitação fundamentada da intervenção e dos projetos dos professores com os alunos, o que era algo totalmente inovador.
JF – A negociação da carreira única, criada pela FNE, foi uma mudança de paradigma profundamente original, para muitos quase impensável de alcançar. Qual foi o seu impacto do ponto de vista internacional?
CAP – A minha experiência foi muito curiosa, porque mesmo ao nível de Portugal fizemos as negociações com um Ministério da Educação liderado por Roberto Carneiro. E lembro-me que ele nos fez uma guerra e dificultou muito a negociação, porque não aceitava as propostas da FNE. Reestruturávamos as propostas, propúnhamos de novo, mas sempre com a mesma filosofia e ele foi de uma resistência brutal ao avanço das negociações. Mas o caminho foi-se fazendo.
Mais tarde, qual não foi o meu espanto quando numa reunião da Internacional da Educação em Portugal em que fomos recebidos pelo Ministro Roberto Carneiro, ele falou da Carreira Única como se tivesse sido ele o criador da ideia. Olhámos todos uns para os outros porque, de repente, alguém que tinha sido um travão à Carreira Única estava ali a apresentá-la quase como sua. Também muitas vezes quando ia ao estrangeiro perguntavam-me como é que em Portugal a FNE tinha conseguido uma carreira deste tipo. A carreira única começou por ser a ideia visionária da Manuela Teixeira, secundada pelo SPZN – que abraçou e liderou com entusiasmo esta visão – e posteriormente pela FNE. Foi a luta enérgica e persistente da FNE que permitiu aos professores portugueses terem uma carreira única.
Foi a FNE quem criou a carreira única. Recordo uma delegada sindical da FENPROF que num plenário do SDPGL/FNE em Algés subiu para cima de uma mesa e gritou a bom som que nunca nenhum colega seu avançaria mais rápido em carreira por conta de novos graus académicos. A FNE esteve sozinha na luta pela carreira única. Mas a carreira única só foi possível porque em Portugal a organização dos sindicatos de origem era por região, integrando cada um docentes de todos os níveis de ensino. Foi no primeiro plenário no Porto, a 29 abril de 1974, que os professores votaram por uma estrutura de sindicatos por região (com todos os níveis de ensino) preterindo a opção de sindicatos por nível de ensino, cada um deles de âmbito nacional.
Este contexto de estrutura sindical permitiu que a defesa dos docentes dos diferentes níveis de ensino pudesse ser feita coletivamente, como um todo. Foi isso que nos permitiu ter professores do 1º ciclo ao secundário, em conjunto, a lutar por uma carreira em que o determinante da situação profissional não fosse os anos de serviço e o ciclo em que se ensinava. A aposta era que todos os professores tivessem a mesma progressão em carreira, independentemente do nível de ensino. Os elementos definidores eram o percurso de carreira e o nível de habilitação. Foi isso que a FNE conseguiu com a carreira única. Algo que os outros países não conseguiam fazer.
Aliás, tenho uma frustração a confessar: nunca conseguimos integrar os docentes do ensino superior nesta dinâmica. Mas os professores universitários eram muito ciosos da sua carreira e não perceberam que, entrando nesta dinâmica, poderiam ter avanços relativamente à situação deles.
A FNE esteve sozinha na luta pela carreira única. Mas a carreira única só foi possível porque em Portugal a organização dos sindicatos de origem era por região, integrando cada um docentes de todos os níveis de ensino.
JF – Como é que o Ensino Superior é olhado nos dias de hoje pelos jovens?
CAP – Tudo depende de que jovens se fala. Ainda não há muito tempo, quando se falava do secundário importava ter em consideração que este nível de ensino era constituído por sobreviventes escolares – isto porque um grupo grande de jovens ficava pelo caminho, não conseguindo sequer chegar a esse nível de ensino. Muitos professores diziam não ter problemas com os seus alunos. Pudera. Era uma elite, sobretudo em determinadas turmas e em certas escolas públicas. Uma parte dessas elites transitaram agora para o privado. Mas voltando atrás, eu falava de uma geração que agora tem 70 anos e que fala “no meu tempo de liceu não havia nada disto”. Obviamente que não existia. Eram 10-15% de alunos, uns cujos pais já tinham estudado até esse nível, outros alunos com uma socialização escolar particularmente bem-sucedida, cujos pais não tendo estudos davam grande valor à instrução, fazendo tudo para os filhos singrarem.
Neste momento, o universo da população é completamente diferente. Os jovens que frequentam o secundário – que é tendencialmente universal – já não são grupos de sobreviventes. Agora temos outras seleções, como os que vão para a via ensino ou os que vão para as vias profissionalizantes. Mas o contexto social é diferente. Ainda há 20 anos quando um jovem acabava o secundário tinha mais hipótese de arranjar um trabalho interessante do que se tivesse apenas o 9º ano realizado. Hoje em dia, sem apoio em casa, os jovens têm muita dificuldade para passar alguns momentos conturbados da adolescência e agarrar a escola.
Mas a escola é muito mais democrática agora do que era antes e, por isso mesmo, há muitos problemas que não existiam antigamente. A sociedade é muito diferente, os jovens também e a escola tem tentado adaptar-se o melhor que pode. Muitas vezes até é na escola que os jovens tocados pela pobreza conseguem viver em igualdade, graças a um trabalho enorme dos professores, só que o mundo é muito desigual.
JF – Na entrevista anterior ao Dr. Aires Lopes, ex- Presidente do SINDLEP, ele dizia a certa altura que os sindicatos estão melhor preparados do que os ministérios. O que falta para se recuperar o diálogo e a negociação?
CAP – Faltam polícos que percebam que podem ganhar com a negociação. Eu lembro-me por exemplo de Almeida e Costa, que foi Secretário de Estado e depois Presidente do Instituto Politécnico de Lisboa, e que tinha a convicção de que as decisões políticas eram melhores se houvesse essa discussão, um entrosar de opiniões e conceções. E houve um período em que ainda existiu memória por parte do Ministério. Mas com o passar dos anos as pessoas que comungavam destas ideias foram para a aposentação e começámos a ter no ministério equipas que não fazem a mínima ideia do historial de cada opção que foi tomada na legislação. Mas isto já acontece há muito. No tempo a seguir ao ECD, nos anos 80, lembro-me de uma equipa ministerial em que a reunião inicial com a FNE teve a duração de sete horas. Manuela Teixeira esteve a explicar à equipa estreante no Ministério o que estava por trás de cada proposta. E houve um Secretário de Estado que, depois falando num contacto mais privado, assumiu que para o Ministério “era muito humilhante achar que uma proposta por ele seria ótima e a FNE demostrar que o ME tinha ignorado uma série de condicionantes ou de possíveis efeitos perversos previsíveis, mostrando mais competência e memória”.
Quem tem o historial e memória tem vantagem. Mas neste momento estou preocupada com as mudanças que a tutela quer fazer nas colocações de professores. Lembro-me que todos tínhamos pânico de mudar o diploma das colocações. Se há professores que reclamam e cujas injustiças tentamos acautelar há outros que vão ficar prejudicados. E depois há o efeito sistema, quando se toma uma decisão com um objetivo e acaba-se por produzir efeitos em sentido contrário. Isto piora quando as pessoas que desembarcam no Ministério da Educação ignoram a complexidade deste ministério. A juntar a isto vemos a infelicidade de ter tido como ministra Maria de Lurdes Rodrigues, que decidiu que o que era bom era aplicar ao ensino básico e secundário a lógica da carreira do ensino superior – que já é má que chegue para os docentes do superior. Desde há vários anos que o ministério perdeu a memória, o conhecimento do sistema e a capacidade de negociação, muito fruto de alterações radicais das equipas.
A escola é muito mais democrática agora do que era antes e, por isso mesmo, há muitos problemas que não existiam antigamente. A sociedade é muito diferente, os jovens também e a escola tem tentado adaptar-se o melhor que pode.
JF – O Sindicalismo vive um tempo que pede mudanças. Como vê os caminhos do futuro?
CAP – O sindicalismo docente vive um momento muito difícil. Muitas das pessoas que lutaram por mudanças em termos de carreira, de condições de vida nas escolas e na profissão, já não estão nas escolas. Os outros que chegaram já encontraram o ECD e uma série de adquiridos. Muitos professores chegam e acham que têm direito ao que foi conquistado, como têm direito ao Cartão de Cidadão. Muitos acham que as lutas não valem a pena, mas aproveitam aquilo que quem batalha consegue. Isto é um problema de sociedade. Lembro-me que fui para França em 1977, na altura em que ainda estavam em ebulição os grupos de trabalho, pessoas que se juntavam para resolver problemas e nos alunos havia uma dinâmica de parcipação. Quando voltei, cinco anos depois, encontrei um ambiente totalmente diferente, de individualismo. E tentei perceber porquê. A minha pista de interpretação foi a seguinte: A minha geração viveu a adolescência e o início da juventude numa sociedade que nos aparecia estável, os adultos cheios de certezas e contra a qual desenvolvemos desejos de mudança e lutámos. Nos anos imediatos ao 25 de abril a sociedade entrou em ebulição, o que era certo num dia poderia ser incerto ou mudar no dia seguinte. Os adultos apareciam mais inseguros. Nesse contexto a contestação para os adolescentes não era procurar mudança, mas antes procurar uma estabilidade, mesmo ilusória. Ao esforço solidário dos adultos os adolescentes contrapuseram uma atitude individualista.
Urge atualmente fazer uma re-descoberta do trabalho solidário, e não apenas do individual, em que os sindicatos se tornem pequenos laboratórios. Importa lutar contra um entendimento minimalista dos sindicatos em que se realizem eleições democráticas, mas as pessoas, tal como na sociedade, depois de elegerem os representantes, desligam ou estão lá apenas para os criticar. Temos de recuperar a preocupação e cuidado uns pelos outros, no sentido de que todos podemos fazer algo para melhorar a sociedade, porque o sindicalismo está a sofrer do mal do individualismo egoísta, de que a sociedade padece. Se o sindicalismo puder contribuir com alguma coisa e mudar esta cultura de sociedade será muito, muito, importante.
O sindicalismo docente vive um momento muito difícil. Muitas das pessoas que lutaram por mudanças em termos de carreira, de condições de vida nas escolas e na profissão, já não estão nas escolas.
Continua…
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