1_ FNE articula políticas sindicais com políticas educativas

Conceição Alves Pinto, Professora Catedrática da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), Presidente do Instituto Superior de Educação e Trabalho (ISET) foi uma das fundadoras do Sindicato Democrático dos Professores da Grande Lisboa (SDPGL), a que presidiu durante 32 anos e que entrou na história da Federação Nacional dos Sindicatos de Professores (FNSP, hoje FNE), em 1988. O SDPGL ‘bebeu’ da FNE a capacidade de articular políticas reivindicativas e educativas, algo completamente original a nível nacional e internacional. Na primeira parte desta entrevista recordamos o trajeto e a importância do sindicato, no terceiro texto com que o Jornal FNE assinala os 40 anos da Federação.

Jornal FNE (JF) – Licenciou-se em Física (Espectroscopia Nuclear) na FCUL em 1973, “vésperas” da revolução de abril. Já sentia o apelo do “sindicalismo” nessa altura?

Conceição Alves Pinto (CAP) – Não. Eu já era muito militante em questões sociais, participava em diversos grupos católicos, mas trabalhava principalmente ao nível de respostas sociais, de alfabetização e até em termos de conscientização. Trabalhávamos muito com a perspetiva de Paulo Freire – educador e filósofo brasileiro – de ligar a alfabetização à conscientização. Por isso, nessa altura eu estava mais envolvida em termos de militância cultural e social.

JF – Depois chega o 25 de Abril e torna-se membro da Primeira Comissão de Gestão da FCUL. Foi aí que tomou consciência dos problemas que a docência e o ensino viviam?

CAP – Na sequência dos plenários que ocorreram nos dias seguintes ao 25 de abril, houve necessidade de encontrar uma comissão de gestão. Que não foi fácil, porque muitos dos catedráticos não seriam aceites na Comissão de Gestão. Mas havia um doutorado, que não me conhecia, que aceitou integrar essa comissão dizendo: “Aceito fazer parte, se aquela senhora ali da trança também aceitar”. Foi aí que entrei, mas também acabei por estar pouco tempo. Sobre os problemas da docência, já os tinha sentido antes. Aliás, tirei a licenciatura em Espectroscopia Nuclear, mas o final do meu 3º ano coincidiu com a decisão do ministro Veiga Simão em implementar a partição das licenciaturas de Ciências em três anos de bacharelato e dois anos de opção entre o ramo educacional e várias áreas de investigação da física. Como era o primeiro ano em que o ramo educacional funcionou a estrutura não estava montada. E quando os meus professores de física souberam que eu queria ir por esse caminho desincentivaram-me. Sugeriram que eu fizesse a licenciatura em física e posteriormente fizesse formação de nível mais avançado em educação e que depois contavam comigo para ser um pilar do Departamento da Educação.

“Participava em grupos católicos, mas trabalhava muito ao nível de respostas sociais, de alfabetização e até em termos de conscientização”.

JF – Foi uma das fundadoras do Sindicato Democrático dos Professores da Grande Lisboa (SDPGL), em 1983, e sua Presidente durante 32 anos. Como surgiu a oportunidade de criar o sindicato?

CAP – Sendo eu de Lisboa, sindicalizei-me, logo a seguir ao 25 de Abril, no Sindicato dos Professores da Grande Lisboa (SPGL). Muito rapidamente me apercebi que o SPGL estava dominado pelo Partido Comunista Português (PCP), até porque eu conhecia bem o movimento associativo universitário, em que tinha estado sempre bastante parcipativa, apesar de nunca ter sido dirigente. E não me agradou o domínio que o PCP tinha no SPGL. Depois, fui fazer o doutoramento para Paris. E quando voltei já tinha havido a separação entre a corrente sindical democrática, entre, por um lado os dois sindicatos originais da Zona Norte (SPZN) e da Zona Centro (SPZC) e por outro lado o sindicato Grande Lisboa (SPGL). Tinha eu chegado a Portugal há relativamente pouco tempo quando me pediram para integrar a Comissão Instaladora da Escola Superior de Educação de Lisboa (ESEL). Estava ocupada com a instalação da ESE, que deu muito trabalho, quando recebo um convite de Almeida e Costa, Presidente do Politécnico, para ir a uma reunião com ele, na altura em que ele coordenava na comissão que estava a lançar o SDPGL.

Fui convidada entretanto para fazer uma intervenção num Seminário sobre a Carreira Docente, na altura organizado pela FNSP/FNE. Na minha intervenção referi que um dos problemas era a política de reconhecimento do desenvolvimento profissional docente. Os professores que por sua iniciativa obtinham um novo grau académico, para terem alguma compensação tinham de abandonar o nível de ensino em que lecionavam e ingressar no seguinte. De outro modo nunca esse novo grau académico seria reconhecido na sua situação profissional. Se tivesse feito esta afirmação nos círculos que conhecia do sindicato dominante em Lisboa tinham-me caído todos em cima. Mas no seminário da FNSP/FNE as pessoas pareciam partilhar esta minha perspetiva, o que me surpreendeu.

A certa altura tive até dúvidas que me estivessem a compreender, mas estavam. Lembro-me particularmente da reação efusiva do Dr. Luís de Melo (SPZN). A perspetiva da FNE foi para mim uma descoberta e eu acho que para a FNE também foi uma descoberta encontrar uma professora universitária a pensar como eu. Foi uma descoberta mútua e dessa forma, através das discussões sindicais inteligentes que eram feitas entre os vários dirigentes da FNE, abriram-se perspetivas de intervenção que achei muito mais interessantes do que as que tinha conhecido até aí.

Quando dei por mim estava a ser eleita Presidente do SDPGL, porque, de facto, foi para mim uma descoberta, sendo de Lisboa, a articulação entre a perspetiva educacional e as opções sindicais, que já existia na FNE em particular no Sindicato de Professores da Zona Norte (SPZN), que foi com quem tive mais contacto na altura. Ora, em Lisboa no sindicato da concorrência existia apenas a parte sindical, apesar de existirem umas iniciativas em termos de formação de professores, mas não uma articulação entre polícas reivindicavas e educativas. E a FNSP/FNE oferecia essa abordagem, o que para mim foi uma grande surpresa.

“Em Lisboa existia apenas a parte sindical, apesar de existirem umas iniciativas em termos de formação de professores, mas não uma relação entre políticas reivindicativas e educativas”.

JF – Quais eram as maiores preocupações do Sindicato na altura?
CAP – 
Destacarei, nas muitas preocupações, apenas três. Para começar os problemas relativos à carreira docente. Quando constuímos o SDPGL já ia adiantada a discussão da nova carreira. Apanhei a ‘época de ouro’ se assim se pode dizer, quando já muito trabalho tinha sido desbravado. Para a carreira ser valorizada, do ponto de vista remuneratório e profissional dos docentes, era fundamental encontrar formas adequadas de avaliação. E aí aconteceu todo um trabalho de criatividade. A conceção que a FNE sempre defendeu e com a qual o SDPGL se identificava em termos de prestação de contas dos professores é completamente original em relação a tudo o resto de que se falava. Por um lado o professor não seria apenas objeto de avaliação mas sujeito da sua prestação de contas. Por outro lado, a prestação de contas devia ter como cerne a atividade docente na interação com os alunos e na prossecução das atividades no âmbito da comunidade educativa.

O primeiro Congresso da FNSP/FNE em que o SDPGL participou foi em 1988. Foi uma fase de grande discussão sobre a carreira. A outra Federação tinha uma cultura que não aceitava a avaliação enquanto que nós na FNE tínhamos consciência que ou os docentes se habituavam a ser avaliados pelo que faziam com os alunos, ou não retirariam vantagem dessa avaliação. Um segundo tema surgiu mais tarde com discussão da chamada ‘gestão democrática das escolas’. A FNE levou a cabo uma grande discussão de âmbito nacional e de construção de propostas alternativas para uma direção e gestão democrática e participada das escolas. Um terceiro tema de preocupação centrou-se na modalidade de formação conducente à profissionalização dos professores detentores de grau académico. Foi uma área em que a FNSP/FNE deu um contributo muito relevante. Sobre este tema a minha experiência foi mais do lado da instuição de formação.

Quando fui instalar a ESE de Lisboa tive de implementar a formação para vários milhares de professores a quem tinha sido dado o estatuto de “efetivo-provisório”. Sei que parece uma designação estranha, mas a figura de efetivo provisório foi uma proposta da FNE para acautelar os direitos dos professores que estavam no sistema e que continuavam sem ter acesso à profissionalização, condição para aceder aos quadros. Nessa altura houve uma vinculação de mais de 20.000 professores para evitar que os finalistas das ESEs que começavam a sair com a profissionalização não ultrapassassem professores mais antigos que não conseguiam aceder ao estágio por as vagas serem muito diminutas para o número de candidatos. Os docentes do preparatório e secundário ganhavam determinado lugar que ficava condicionado à conclusão da profissionalização.

JF – Em 1982, formou-se a Federação Nacional dos Sindicatos de Professores – FNSP, que foi a primeira federação nacional a constituir-se em Portugal. Que papel teve o SDPGL na afirmação inicial da FNE?

CAP – O SDPGL entra quando a FNSP muda a sua designação para FNE para abarcar os STAAE’s (sindicatos de não docentes) – no congresso da federação de 1988. Nessa altura, a FNE era para mim uma organização absolutamente distinta, não só em Portugal, mas também em termos europeus, na forma como articulava as questões do sindicalismo com as educativas. Normalmente, quando íamos aos congressos internacionais havia muita preocupação com as reivindicações sindicais e pouco espaço para matérias de política educacional. Mas o entrosamento entre as reivindicações que fazíamos para a carreira, para a gestão e administração das escolas, com questões de política educativa, foi algo que eu não tinha visto em lado nenhum. E a FNE trouxe essa riqueza de modo muito claro. O SDPGL também “bebeu daí”, porque ao estar em Lisboa estávamos muito próximos dos processos de negociações e tivemos de nos formar muito rapidamente para enfrentar os opositores. Nesse aspeto, a FNE desempenhou um papel preponderante, e nós fomos a face da FNE na zona da grande Lisboa.

“A FNE era para mim uma organização absolutamente distinta, não só em Portugal, mas também em termos europeus, na forma como articulava as questões do sindicalismo com as educativas”.

JF – Entre 2000 e 2005, realizou com a professora Manuela Teixeira o projeto “A escola e os seus atores”. Se o fizessem hoje quais seriam as grandes diferenças no conteúdo dessa invesgação?

CAP – Não iriam existir diferenças abissais, porque esse projeto tinha uma formulação global e estava aberto à evolução dos diferentes eixos. Mas aí temos de falar do ISET (Instuto Superior de Educação e Trabalho), onde a perspetiva de formação sempre foi que os trabalhos académicos pudessem ser a expressão de uma reflexão aprofundada sobre a experiência profissional dos professores e dos trabalhadores da educação. Todos os formandos terminavam quer o CESE quer o mestrado fazendo um trabalho de investigação. Inicialmente exisam três grandes áreas. Uma centrava-se na vivência profissional dos professores. Uma segunda área focava-se na experiência dos alunos. A terceira permiu aprofundar a experiência da participação dos pais na escola, que na altura ainda dava os primeiros passos. Progressivamente foi surgindo também investigação sobre as vivências dos não docentes. Mais tarde, o ISET alargou o acesso de formação e qualificação aos Trabalhadores Não Docentes. Em 1991, foi constituída a associação denominada ISET, hoje AFIET, Associação para a Formação e Invesgação em Educação e Trabalho. A AFIET é propriedade da FNE e dos seus sindicatos e tem desempenhado um papel crucial na formação de educadores, professores e sociedade, em geral.

Voltando ao conteúdo da invesgação direi que, em termos de eixos, não iríamos mudar muito ao trazer esse projeto para o presente. Só que a experiência que havia nos anos 90, nas escolas, eram situações muito diferentes da atualidade. O corpo docente era completamente diferente. Havia mais professores que só tinham completado a sua formação quando já eram profissionais com habilitação de bacharelato e havia ainda muita gente ao nível do secundário, sobretudo em Letras. Por isso, para muitos professores que fizeram formação acrescida havia uma valorização diferente à que existe hoje. E a população de alunos, aquilo a que eu chamava de sobreviventes escolares, não retratava a totalidade da população portuguesa de jovens. Porque muitos alunos abandonavam a escola, ou por força das repetências nunca chegavam ao secundário. Entretanto, nos últimos anos já tivemos trabalhos de investigação sobre as repercussões da internet na vivência dos alunos, em geral e na escola. Na altura, a internet ainda era pouco utilizada. Mas se fosse hoje, a situação já seria completamente diferente. Em termo dos pais, tem-lhes sido dado muito mais espaço na escola e por isso haveria todo um trabalho a fazer sobre a abertura das escolas aos pais, mas também dos pais à escola. Houve experiências negativas de pais que achavam que por ir à escola podiam mandar nos professores. Há aqui um jogo de poderes que seria importante estudar, assim como outros temas, tais como o ensino profissional e a via ensino, que tomaram caminhos diferentes no presente. Atualizar o projeto obrigaria, sem dúvida, a muitas alterações. Porque acima de tudo uma coisa são as políticas educativas e outra é a forma como as políticas são concretizadas no terreno.

“A AFIET é propriedade da FNE e dos seus sindicatos e tem desempenhado um papel crucial na formação de educadores, professores e sociedade, em geral”.

Continua…

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